
Convenções de vários tipos definem, e muitas vezes limitam, o formato de um produto que se apresenta em televisão. O facto de se tratar de um meio destinado a uma audiência de grandes massas obriga, na generalidade dos casos, a que os programas emitidos obedeçam a um certo número de requisitos, narrativos e formais, por forma a que as expectativas do público não saiam defraudadas. A própria história da televisão demonstra que o espectador-médio retira conforto da familiaridade e do carácter formulaico da oferta televisiva, e retribui com audiência. Esta regra pode ser, grosso modo, aplicada a todos os géneros televisivos; e aplica-se também, até com alguma ferocidade, às séries ficcionais, categoria em que Twin Peaks se inscreve. O desígnio último da ficção em televisão é proporcionar momentos de deleite imaginativo. Com maior ou menor grau de pretensão instrutiva e/ou pedagógica, uma série faz-se valer das relações de quase-intimidade que o público estabelece com as personagens que nela habitam para vingar. E, para tal, estruturam o enredo em torno de referências mais ou menos estereotipadas.
Só uma rápida e inicial observação pôde, contudo, integrar Twin Peaks no estilo dramático e policial. É certo que o isco utilizado para prender o público ao ecrã era um assassinato e subsequente investigação. O agente do FBI Dale Cooper (personagem de que o actor Kyle Maclachlan não mais conseguirá descolar-se, dure a sua vida cem anos) surge como o protagonista-herói, chegando a Twin Peaks ao mesmo tempo que todos nós para desvendar o mistério que ali irrompe. Contudo, e talvez seja esse o elemento que mais facilmente justifica o imediato estatuto de culto que a série conquistou, não durou quase nada até que as massas de quinta-feira à noite percebessem que estavam perante algo de verdadeiramente inovador, em termos de classificação genérica. Twin Peaks é mistério e é drama, mas é impossível não atribuir relevo aos elementos de comédia, terror, fantasia e ficção-científica de que mostrou, logo à partida, ser feita. É certo que, anteriormente, outras séries de televisão tinham conseguido alcançar um estatuto de culto – Star Trek, por exemplo. Porém, ao contrário do que nesses casos acontecia, a assimilação de Twin Peaks por parte da cultura popular, e o fanatismo internacional que suscitou, foi algo que não se deveu à longevidade do programa. Aconteceu de forma imediata. Acaloradas discussões acerca de quem matou Laura Palmer, bem como a mais profunda dissecação das intenções de Lynch ao colocar na boca desta ou daquela personagem este ou aquele diálogo, passou a ser instantaneamente comum e universal, nas manhãs do dia seguinte. David Lynch assumiu que tinha como objectivo lançar um feitiço sobre a audiência e fazer até com que os espectadores passassem a sentar-se de um modo diferente nas suas poltronas, em frente ao televisor. Conseguiu.
Escreveu Umberto Eco que o sucesso de qualquer série sempre dependeu do convite que o telespectador faz às personagens para entrarem na sua sala-de-estar… ou não. Uma vez estabelecido esse fundamental elo de familiaridade entre a ficção projectada a duas dimensões e a vida real de quem a acompanha, há todo um universo de análise semiótica que então se forma. O público passa a fazer questão de pertencer ao mundo que vê retratado na televisão; de perceber as motivações, angústias, hábitos, qualidades e defeitos das personagens. Uma vez comprometido com uma determinada experiência televisiva, o público que a ela é devoto passa, de algum modo, a sentir orgulho em fazer parte daquela comunidade interpretativa. E que fácil é, de facto, associar esta descrição de Eco àquilo que, no princípio dos anos noventa, se processou com Twin Peaks. A expressão peakspeak, que na altura surgiu, ilustra com bem-humorada eficácia o delírio colectivo que Laura Palmer, Agent Cooper e os demais habitantes daquela cidade fizeram nascer, junto de um impressionante número de espectadores. Os fãs da série cumpriram os requisitos fundamentais do culto participativo, gerando discurso acerca do discurso.
Pois se tomámos já como ponto assente que a televisão assenta sobre pressupostos de previsibilidade, regularidade de horários e fácil reconhecimento dos tipos de programação que oferece, convém analisarmos que características terá Twin Peaks demonstrado para permitir tamanha aderência por parte do público: os temas abordados, a abolição de fronteiras genéricas, a música, a inovação formal e a intertextualidade.
Temas abordados
Twin Peaks explorou (em última instância, até à exaustão) o enorme abismo que se ergue entre a aparente respeitabilidade dos habitantes de uma determinada localidade, e os segredos que cada um deles inevitavelmente guarda. O tema da duplicidade, desde logo explicitado no título do programa, foi recorrente, ao longo das duas temporadas que o mesmo durou: as primas Laura e Maddie (ambas interpretadas pela actriz Sheryl Lee); o White Lodge e o Black Lodge, entidades abstractas de espaço que acolhiam o que de bom e mau havia, em termos espirituais, na cidade; o sereno Leland e sua possessão pelo assassino BOB, que o obrigava aos mais hediondos crimes.

Abolição de fronteiras genéricas
Reconhecida que está a faceta subversiva de Twin Peaks em relação ao género da soap-opera, não deixa de ser imprescindível assumir, também, os pontos que mantinham em comum: a redundância narrativa verificada de um episódio para o seguinte, o intensivo prolongamento do desenrolar dos acontecimentos, a utilização dos intervalos para publicidade como eixos divisórios estruturais e, por fim, uma absoluta resistência dos autores a qualquer tipo de fechamento narrativo. Foi, portanto, graças a esta inédita combinação de estilos e géneros, diferente de tudo o que já tinha sido visto, que Twin Peaks atormentou e seduziu.
Música

Inovação formal

Intertextualidade
Para além de referências implícitas a anteriores trabalhos de David Lynch e de piscadelas de olho a obras de culto de outros mestres do cinema – sendo Hitchcock, mestre do suspense, um deles -, Twin Peaks gerou uma nunca-vista parafernália de itens coleccionáveis, que em muito contribuíram para elevar a série ao estratosférico nível de culto de que ainda goza. O livro Diário Secreto de Laura Palmer, escrito pela filha do realizador, permitiu ler em detalhe aquilo que, no ecrã, era fugazmente referido. The Agent Cooper Audio Tapes possibilitaram a audição, na íntegra, de todos os monólogos que o agente do FBI imprimia no seu gravador portátil. The Twin Peaks Gazette, uma newsletter trimestral que apenas muito recentemente se extingiu, oferecia aos seguidores de Twin Peaks informação detalhada acerca do passado de todas as personagens, bem como dos actores que lhes davam corpo.
