ESTILO, CULTO E SUBVERSÃO

Embrulhado em plástico, o corpo da mais popular jovem de uma pequena cidade norte-americana dá à costa. Laura Palmer tinha sido brutalmente assassinada. O mistério em torno da morte uma mulher em apuros foi a ideia que assaltou a fervilhante imaginação do cineasta David Lynch, no instante em que se viu colocado perante a hipótese de dar vida a uma série de televisão. Há muito que o seu agente tentava convencer o criador de Elephant Man, Dune e Blue Velvet a transferir a bizarria dos seus filmes para o pequeno ecrã. Lynch resistiu à proposta enquanto conseguiu, mas a circunstância de ter visto a adaptação para o cinema de alguns argumentos seus recusada, a par da amizade que entretanto tinha estabelecido com Mark Frost, fizeram-no mudar de ideias. Em 1988, em plena greve de argumentistas, Lynch e Frost reuniram com o director do canal ABC Network e descreveram-lhe a imagem do cadáver da princesa do liceu. O conceito da série, garantiram então, era desvendar os segredos dos habitantes de Twin Peaks, ao mesmo tempo que a investigação em torno de quem matou Laura Palmer ia prosseguindo. Fundir os formatos de drama policial e soap-opera era o objectivo.A ABC gostou de ideia e um acordo formal para a produção de um episódio-piloto foi assinado. O piloto, lembre-se, funciona como um protótipo daquilo que os autores de uma série televisiva pretendem desenvolver. É através da análise dessa primeira amostra que as cadeias decidem avançar, ou não, com o investimento para novos tomos da história que ali se apresenta. Como condição para a produção desse cartão-de-visita, a ABC impôs a Lynch e Frost a rodagem adicional de um final conclusivo. Caso a luz-verde para prosseguirem trabalhos não surgisse, Twin Peaks seria vendida a distribuidoras europeias, que a colocariam directamente no mercado de vídeo, como se de um filme se tratasse. Não foi, porém, isso que aconteceu. O episódio-piloto foi (não unanimemente) aprovado e sete novos episódios foram encomendados à equipa. A 8 de Abril de 1990, Twin Peaks estava no ar.

Convenções de vários tipos definem, e muitas vezes limitam, o formato de um produto que se apresenta em televisão. O facto de se tratar de um meio destinado a uma audiência de grandes massas obriga, na generalidade dos casos, a que os programas emitidos obedeçam a um certo número de requisitos, narrativos e formais, por forma a que as expectativas do público não saiam defraudadas. A própria história da televisão demonstra que o espectador-médio retira conforto da familiaridade e do carácter formulaico da oferta televisiva, e retribui com audiência. Esta regra pode ser, grosso modo, aplicada a todos os géneros televisivos; e aplica-se também, até com alguma ferocidade, às séries ficcionais, categoria em que Twin Peaks se inscreve. O desígnio último da ficção em televisão é proporcionar momentos de deleite imaginativo. Com maior ou menor grau de pretensão instrutiva e/ou pedagógica, uma série faz-se valer das relações de quase-intimidade que o público estabelece com as personagens que nela habitam para vingar. E, para tal, estruturam o enredo em torno de referências mais ou menos estereotipadas.

Só uma rápida e inicial observação pôde, contudo, integrar Twin Peaks no estilo dramático e policial. É certo que o isco utilizado para prender o público ao ecrã era um assassinato e subsequente investigação. O agente do FBI Dale Cooper (personagem de que o actor Kyle Maclachlan não mais conseguirá descolar-se, dure a sua vida cem anos) surge como o protagonista-herói, chegando a Twin Peaks ao mesmo tempo que todos nós para desvendar o mistério que ali irrompe. Contudo, e talvez seja esse o elemento que mais facilmente justifica o imediato estatuto de culto que a série conquistou, não durou quase nada até que as massas de quinta-feira à noite percebessem que estavam perante algo de verdadeiramente inovador, em termos de classificação genérica. Twin Peaks é mistério e é drama, mas é impossível não atribuir relevo aos elementos de comédia, terror, fantasia e ficção-científica de que mostrou, logo à partida, ser feita. É certo que, anteriormente, outras séries de televisão tinham conseguido alcançar um estatuto de culto – Star Trek, por exemplo. Porém, ao contrário do que nesses casos acontecia, a assimilação de Twin Peaks por parte da cultura popular, e o fanatismo internacional que suscitou, foi algo que não se deveu à longevidade do programa. Aconteceu de forma imediata. Acaloradas discussões acerca de quem matou Laura Palmer, bem como a mais profunda dissecação das intenções de Lynch ao colocar na boca desta ou daquela personagem este ou aquele diálogo, passou a ser instantaneamente comum e universal, nas manhãs do dia seguinte. David Lynch assumiu que tinha como objectivo lançar um feitiço sobre a audiência e fazer até com que os espectadores passassem a sentar-se de um modo diferente nas suas poltronas, em frente ao televisor. Conseguiu.

Escreveu Umberto Eco que o sucesso de qualquer série sempre dependeu do convite que o telespectador faz às personagens para entrarem na sua sala-de-estar… ou não. Uma vez estabelecido esse fundamental elo de familiaridade entre a ficção projectada a duas dimensões e a vida real de quem a acompanha, há todo um universo de análise semiótica que então se forma. O público passa a fazer questão de pertencer ao mundo que vê retratado na televisão; de perceber as motivações, angústias, hábitos, qualidades e defeitos das personagens. Uma vez comprometido com uma determinada experiência televisiva, o público que a ela é devoto passa, de algum modo, a sentir orgulho em fazer parte daquela comunidade interpretativa. E que fácil é, de facto, associar esta descrição de Eco àquilo que, no princípio dos anos noventa, se processou com Twin Peaks. A expressão peakspeak, que na altura surgiu, ilustra com bem-humorada eficácia o delírio colectivo que Laura Palmer, Agent Cooper e os demais habitantes daquela cidade fizeram nascer, junto de um impressionante número de espectadores. Os fãs da série cumpriram os requisitos fundamentais do culto participativo, gerando discurso acerca do discurso.

Pois se tomámos já como ponto assente que a televisão assenta sobre pressupostos de previsibilidade, regularidade de horários e fácil reconhecimento dos tipos de programação que oferece, convém analisarmos que características terá Twin Peaks demonstrado para permitir tamanha aderência por parte do público: os temas abordados, a abolição de fronteiras genéricas, a música, a inovação formal e a intertextualidade.

Temas abordados
Twin Peaks explorou (em última instância, até à exaustão) o enorme abismo que se ergue entre a aparente respeitabilidade dos habitantes de uma determinada localidade, e os segredos que cada um deles inevitavelmente guarda. O tema da duplicidade, desde logo explicitado no título do programa, foi recorrente, ao longo das duas temporadas que o mesmo durou: as primas Laura e Maddie (ambas interpretadas pela actriz Sheryl Lee); o White Lodge e o Black Lodge, entidades abstractas de espaço que acolhiam o que de bom e mau havia, em termos espirituais, na cidade; o sereno Leland e sua possessão pelo assassino BOB, que o obrigava aos mais hediondos crimes.

Abolição de fronteiras genéricas
O estilo que domina a generalidade dos episódios de Twin Peaks recorreu à tonalidade desconcertante, a espaços sobrenatural, que normalmente se encontra no género da fantasia e/ou do terror. O humor quase slapstick de uma cena podia perfeitamente ser seguido por uma sequência que perturbava como poucos thrillers conseguiam. A cena do assassínio de Maddie, momento em que finalmente se percebe quem tinha tirado a vida a Laura Palmer, continua a ser considerada a mais violenta sequência alguma vez exibida no horário-nobre da televisão norte-americana. Mas, ao mesmo tempo que o mistério se adensava, foi sendo dado ênfase à faceta melodramática, muitas vezes telenovelesca, das vidas das personagens. Várias declarações de Lynch a e Frost à imprensa colocaram em evidência, aliás, a suspeita de que essa nada-convencional aproximação ao formato da soap-opera era de sobremaneira intencional. À revista TV Guide, por exemplo, Mark Frost admitiu que estavam a tentar reformular o género da soap das nove, tal como Hill Street Blues tinha feito com o género policial, anos antes.

Reconhecida que está a faceta subversiva de Twin Peaks em relação ao género da soap-opera, não deixa de ser imprescindível assumir, também, os pontos que mantinham em comum: a redundância narrativa verificada de um episódio para o seguinte, o intensivo prolongamento do desenrolar dos acontecimentos, a utilização dos intervalos para publicidade como eixos divisórios estruturais e, por fim, uma absoluta resistência dos autores a qualquer tipo de fechamento narrativo. Foi, portanto, graças a esta inédita combinação de estilos e géneros, diferente de tudo o que já tinha sido visto, que Twin Peaks atormentou e seduziu.

Música
Os acordes que Angelo Badalamenti compôs para a banda-sonora de Twin Peaks ainda hoje assombram e ecoam na memória de toda uma geração de espectadores. A um só tempo épica, melodramática e terrorífica, a ambiência sonora que, em estreita colaboração com Lynch, o compositor italiano edificou para a série continua a ocupar um destacadíssimo lugar no top de bandas-sonoras mais vendidas de todos os tempos. Mesmo quem não viu a série reconhece Theme from Twin Peaks ao fim de poucos segundos. Tal como, a certa altura, refere a personagem do anão que dança em sonhos, Little Man From Another Place (Michael J. Anderson), there is always music in the air. O tom musical da série, ora grave e tenebroso, ora cómico e jazzístico, foi algo de que em poucas cenas dos 29 episódios Lynch se permitiu prescindir.

Inovação formal
Twin Peaks foi, talvez, a primeira série de televisão a procurar, e com sucesso obter, a excelência visual que, até então, apenas era canalizada para o cinema. A tonalidade sóbria dos cenários e do guarda-roupa conferiram à série um aspecto datado, de anos cinquenta, que contrastou com o facto de a mesma se desenrolar no tempo presente. A utilização de temas e imagens recorrentes na obra de Lynch – planos mais longos do que o habitual, electricidade intermitente, sumptuosas sequências onde sonho e realidade se confundem, vultos que emergem ou se perdem na escuridão, os segredos da floresta à noite, a personalidade frente ao espelho – serviram, também, para desinstalar o espectador do conforto que comummente associava à programação do género. De salientar, ainda, a liberdade criativa de que os criadores da série, bem como os realizadores por eles contratados para dirigirem alguns episódios, gozaram, em termos de enquadramentos de câmara.

Intertextualidade
Para além de referências implícitas a anteriores trabalhos de David Lynch e de piscadelas de olho a obras de culto de outros mestres do cinema – sendo Hitchcock, mestre do suspense, um deles -, Twin Peaks gerou uma nunca-vista parafernália de itens coleccionáveis, que em muito contribuíram para elevar a série ao estratosférico nível de culto de que ainda goza. O livro Diário Secreto de Laura Palmer, escrito pela filha do realizador, permitiu ler em detalhe aquilo que, no ecrã, era fugazmente referido. The Agent Cooper Audio Tapes possibilitaram a audição, na íntegra, de todos os monólogos que o agente do FBI imprimia no seu gravador portátil. The Twin Peaks Gazette, uma newsletter trimestral que apenas muito recentemente se extingiu, oferecia aos seguidores de Twin Peaks informação detalhada acerca do passado de todas as personagens, bem como dos actores que lhes davam corpo.